Resenha de “Preconceito Linguístico”, de Marcos Bagno

Ainda me falta ler uma obra politizada que não incorresse em um pouco de hipocrisia… mesmo que concorde em geral com suas ideias. A razão é óbvia: partindo de seu próprio viés, o autor escolhe quais críticas cabem a seus oponentes, e quais delas não cabem a si próprio. Tendenciosismo político? Isso é para os outros.

Exemplo? Logo no começo, Bagno alerta que não há como se falar em preconceito linguístico sem incorrer em política. De onde eu vim isso se chama “não quero analisar os dados de forma científica, por isso vou usar o politiquês”. Que irônico que Bagno, em sua defesa de um mundo melhor, incorra à mesma postura argumentativa assumida pelos piores chefes e gerentes que encontrei em minha carreira corporativista, coisa de capitalismo antigo, ruim, bem a la Wall Street de anos 80. Ai, ai, ai.


Este GIF foi inserido de propósito para enojar os esnobes literários que acham que linguagem corporal “é para os fracos”.

E mais longe, ele se ofende por ser “acusado” de “esquerdista de meia-pataca”. Afinal, meu amigo, você é esquerdista ou não? Não foi você que afirmou há 100 páginas atrás que não há como sujar as mãos com política ao falar de preconceito?

Mas demos um desconto ao autor. Seu objetivo foi, nas palavras de Bagno, “simplificar (talvez demais) os conceitos da Lingüística para torná-los acessíveis a um público mais amplo.” E isso é louvável. A verdade é que, toda vez que um intelectual escreve uma dessas obras intragáveis de ler, que só os universitários obrigados a aguentá-los terminam, inadvertidamente aliena-se a camada da população que mais precisa dela. Por um lado isso é necessário (na academia, não dá pra abrir mão de rigor científico, embora eu veja muitos intelectuais que não o observam sendo louvados – e pior – referenciados nas ciências sociais da vida), mas nossos brasileiros “comuns” também precisam de mais conhecimento. E para isso, precisamos de mais intelectuais que abram mão um pouco do prestígio acadêmico, desçam do cavalo e expliquem “a grosso modo” alguns conceitos básicos de sua área. Assumir a postura de “educador das massas”, para mim, é mais útil do que a fábrica de preciosismo intelectual e falácias ad hominem que é o “cenário intelectual” (isso existe?) de agora.

Para educar o leigo sobre linguística, o autor escolhe uma trilha bem interessante. Primeiro, vai perfilando os mitos sobre nossa língua e mata-os na cabeça, um a um. Esta é de longe a parte mais divertida do livro, e também a que contém os argumentos mais fortes…


O que aconteceu, ao longo do tempo, foi uma inversão da realidade histórica. As gramáticas foram escritas precisamente para descrever e fixar como “regras” e “padrões” as manifestações lingüísticas usadas espontaneamente pelos escritores considerados dignos de admiração, modelos a ser imitados. Ou seja, a gramática normativa é decorrência da língua, é subordinada a ela, dependente dela. Como a gramática, porém, passou a ser um instrumento de poder e de controle, surgiu essa concepção de que os falantes e escritores da língua é que precisam da gramática.

Ou seja, o que aconteceu com a gramática foi o mesmo que acontece diariamente com milhares de processos burocráticos em nossas esferas pública e privada: nasceu com boas intenções, mas depois se perdeu. O carimbo, a assinatura, o papel, a gramática, todos eles obedecem a si próprios, e não ao objetivo ao qual foram inicialmente criados.


… se Chico Buarque, Manuel Bandeira e Machado de Assis (que […] escreveu: “Mas aonde te vais agora,! Onde vais, esposo meu?”) não servem como exemplos de usuários da “língua culta”, quem servirá?

Lendo a desmistificação de várias balelas que circulam por aí e que servem como alicerce do preconceito linguístico atualmente, me espantei porque desde sempre li muitos livros, e “falei bem” o português por causa disso, e só agora percebi que não é preciso estudar gramática para falar e escrever bem!… E que erro de português é uma coisa, erro de ortografia é outra, mas que muita gente que ensina português não sabe a diferença!Minha parte favorita diz respeito ao mito de que no Maranhão se fala o melhor português do Brasil (balela).

E o engraçado é que, mesmo bem intencionado, Bagno comete erros:


É sabido que no Maranhão ainda se usa com grande regularidade o pronome tu, seguido das formas verbais clássicas, com a terminação em —s característica da segunda pessoa: tu vais, tu queres, tu dizes, tu comias, tu cantavas etc.

Como maranhense, sei de primeira mão que o autor está desatualizado. Conjugávamos bem o tu nas décadas de 50 ou 60, porém, com a crescente imigração de pessoas do interior, o tu vem “sofrendo”. Mas até hoje ouço ludovicenses batendo no peito e dizendo que “São Luis fala o melhor português do Brasil, porque não temos ‘sutaque’.”


[…] um instrutor de auto-escola quer formar bons motoristas, e não campeões internacionais de Fórmula 1. Um professor de português quer formar bons usuários da língua escrita e falada, e não prováveis candidatos ao Prêmio Nobel de literatura!

Mesmo cientes do quão tendencioso o autor é, às vezes os argumentos são tão bons que a gente liga o foda-se e só quer que ele suba no palco e sambe!


poucas instituições houve no Brasil tão obtusas, nefastas, injustas, antidemocráticas e perniciosas quanto o vestibular. Nunca consegui entender por que uma pessoa que quer estudar Direito precisa fazer prova de física, química, biologia e matemática, se o que ela aprendeu dessas matérias já foi avaliado na conclusão do 2° grau. Com o fim do vestibular, desaparecerá também toda a indústria que se formou em torno dele: os nefandos “cursinhos” onde ninguém aprende nada, onde não há nenhuma produção de conhecimento mas apenas reprodução de informações desconexas, onde centenas de alunos se apinham numa sala, onde tudo o que se faz é entupir a cabeça do aluno com “truques” e “macetes” que em nada contribuem para a sua verdadeira formação intelectual e humanística.

Mas faltam alguns esclarecimentos. Ao defender-se de suas acusações de ser “demagógico” ou “relativista”, Bagno diz que os linguistas na verdade defendem na escola o ensino da norma-padrão. Ué? Mas eu, sou ignorante em termos de linguistas, como vou saber que diabos é essa tal de norma-padrão? É a variação culta de nossa língua portuguesa, como falada pelos membros mais “cultos” de nossa sociedade? É uma versão acessível da gramática atual? O que é isso?

E ás vezes, é difícil levar o autor a sério:

“Ninguém comete erros ao falar sua própria língua materna, assim como ninguém comete erros ao andar ou ao respirar. Só se erra naquilo que é aprendido, naquilo que constitui um saber secundário, obtido por meio de treinamento, prática e memorização…”

Mas fofinho, falar uma língua estruturada não é tão natural ou intuitivo como andar ou respirar. Aliás, até andar como bípede depende de contato com outros humanos, segundo pedagogos. Aprendizado é um processo social, e a língua se situa neles. Então não engulo de todo o argumento de que “não há erro de português porque falar é algo natural”. Emitir grunhidos, talvez. Mas falar uma língua com um mínimo de estruturação? Não creio, e que fique bem claro que essa é somente uma asserção minha e que não tenho conhecimentos científicos para corroborar minha posição.

E é esta a impressão geral que tive ao ler este livro: concordei com a ideia chave de que precisamos utilizar menos a língua como instrumento de exclusão, mas a série de tendenciosismos e pequenas inconsistências que permeiam o texto o torna difícil de ser levado a sério como um todo.

Autor: Amanda Alexandre

Uma eterna amante das paixões humanas. Ser adulto dá medo. E é fantástico também.

11 comentários em “Resenha de “Preconceito Linguístico”, de Marcos Bagno”

  1. Sua Resenha é interessante. O último ponto em especial. E deixo aqui alguns comentários, que espero, pertinentes sobre o assunto.
    1) Falar é constitutivo de todos os seres humanos; repare que em contato com o outro sempre estabelecemos comunicação.
    Evidência disso é que filhos de surdos, não obtendo respostas verbais dos pais, logo passam a gesticular com as mãos. Outra, os bebês balbuciam, o famoso gugu-dádá, diferentemente em línguas diferentes. Isso é um fenômeno interessante.
    2) Certas lesões em partes específicas do cérebro afetam apenas o uso de determinadas palavras, substantivos ou verbos, ou a sintaxe da língua, ou sua semântica.
    3) Notadamente aprendemos um certo comportamento linguístico desde o nosso nascimento, não impossibilitados de aprender novos no decorrer da vida, mas veja que a depender do meio social em que se está inserido, a variedade muda na fase de aquisição. Assim, um comportamento dito “culto” ou “não culto” num primeiro momento é reflexo do que se observa no entorno desse indivíduo que está adquirindo a língua em fase pré-escolar. Isso será modelado ao longo da vida, evidente, mas o ponto do Bagno é a noção de erro: errar é produzir uma sentença como ‘margarida dei flores um mês que vêm’. Essa sentença não pertence ao português em qualquer variedade.

    Não me estenderei muito no assunto. Concordo com algumas de suas colocações.
    Um abraço

    Curtir

Deixe um comentário